10.2.11

Um conto inacabado


Albenísio Fonseca

A serpente dorme com ela esta noite. Um relógio estúpido orquestra o tempo na sala enfumaçada. A casa dispõe de apenas dois cômodos. Num deles, um extenso aparato tecnológico torna tudo agradável, como sorriso de criança impossível. Para ter acesso ao cômodo seguinte, antes de mais nada é necessário todo um ritual para livrar-se das enormes teias de aranha e montanhas de poeira. Um sonho secular atravessara aquelas paredes e fixara-se no recinto como uma sombra de concreto e areia. Muita areia.

Amanhecera. Jaíra soltou os cabelos no espelho e correu em direção ao vazio da porta. Chovia e fazia sol. Tornou-se em seu próprio corpo, apanhou os sapatos jogando-os por sobre os ombros. Teria que ir àquele encontro, não havia como furtar-se a ele. Saciar toda aquela ansiedade ainda seria bem mais proveitoso que permitir-se à angústia nos minutos desafinados de depois do encontro. Imagens tantas.

- Sei que vai ser difícil extrair toda a terra que sossobra nos meus olhos, mas haverei de olhá-lo como de uma nuvem. Afinal, esse desejo traça limites no meu próprio sangue. Que seja o precipício desse prazer e nada mais.

Um ônibus cruzara a avenida quando chegou à esquina, uma dúvida sorrateira penetrou-lhe a narina junto com aquele corrente de ar que escapava de tudo em volta. Correu imitando um gesto feliz e percebeu o asfalto frio sob os pés. Tinha que pegar aquele coletivo... Precipitou os passos e gritou num último fôlego para que o veículo a esperasse.

Agora não havia mais sol. No interior do veículo aquele silêncio de motor gerando o deslocamento trazia-lhe o reconforto do ar. Pagou a passagem sem troco, limpou o vidro e se sentiu chuva. Não no asfalto, mas no barro escorregadio, como aquele sentimento nervoso.

Rodolfo Faro fumava um cigarro sorridente. A espera não parecia incomodá-lo, divertia-se olhando as crianças brincarem no parque e permitindo-se ter os olhos transpassados por automóveis ao longo do contorno da pracinha.

Moreno pálido, meio rústico, metalúrgico com pinta de empresário, amassou a ponta acesa do cigarro com o calcanhar do sapato sem a menor contração na face. Pensava nas sobrancelhas. “É preciso acabar com essa relação, dar um fim a todo esse mal entendido. A paixão incendiária que nos envolveu, agora é um sentimento frio”

A chuva veio chegando e algumas crianças corriam seguidas pelas babás. Levantou-se do banco da praça como uma âncora e buscou o porto seguro de uma marquise. Um Volkswagen salpicou de lama sua roupa, enquanto naufragava o sapato numa pequena poça: Havia muito pouca importância em tudo aquilo.

- Imagino que alguém nessa cidade louca e turbulenta deseje traduzir em português arcaico o que diz o trovão. Mas sinto-me apenas como um alvo perfeito para o tiro de um franco atirador. Essa sensação esquisita. Pensava.

Usar o lenço como uma toalha, acender outro cigarro e comprar aquele jornal de Brasília. Curiosidade e sofisticação era um gesto preciso. Folhear as fotografias com olhos distantes, para além da chuva. “Será que ela vem mesmo?”

- Moço, paga um café prá mim?

Retirou do bolso de trás das calças um maço de notas novas e deu sem pena 100 mangos para o guri sem camisa e sem calçado. Não se deixou afetar e voltou a recostar-se concentrando-se na leitura.

- Jornal estúpido, não tem nada de interessante, devia trazer indicações de opção para o caso de desagrado na leitura. Não serve prá nada, de qualquer maneira vou guardá-lo.

Mais um cigarro. Sabia que chagara cedo para o encontro e mesmo sentindo fisgadas de ansiedade, procurava mostrar a si mesmo, talvez no brilho enlameado dos sapatos, a tranqüilidade dos que decidem conscientemente.

Um nariz colado no vidro. Respiração contida. Olhos varando a cidade à cata de algo não exatamente presumível. 8º andar do Edifício Jacqueline. Marconi Sabinada acabara cedo o serviço no escritório e aguardava ansioso o giro do ponteiro no cartão de ponto e que a chuva passasse. O vidro ficara inteiramente turvo, embasado pelo seu hálito de suco de laranja com sanduíche de queijo e uma garrafa térmica quase inteira de cafezinhos.

Pensava como um caleidoscópio. Imagens embaralhadas e um murmúrio intenso de palavras, de vozes. Marconi voltou-se para o espaço milimetrado da sala com os olhos cheios de chuva e riu-se fantasiado sobre a carteira. Donas Luiza e Sandrinha ainda datilografavam os dedos nas cartas de cobrança. Havia 26 clientes em atraso. Andou pela sala como quem dá a volta ao mundo e tornou ao vidro paisagístico da janela.

Lá em baixo, um ônibus parava no ponto para que apenas uma mulher descesse. Sapatos sobre os ombros. Acompanhou sua corrida até que desaparecesse sob a marquise do prédio. A imagem lhe perseguiria até cronometrar o esforço daquele dia de trabalho no papelão do cartão de ponto. Sua memória agira era tão embaçada quanto ficara o vidro

- Meninas, até segunda, bom final de semana. O sábado era sempre assim. O meio-dia indicava-lhe apenas o sinal da fome. Marconi era um sujeito benquisto, boa pinta, agradável, brincalhão, fácil de se por adjetivos.

Tomou o rumo do restaurante. “Mas aquela mulher ali ao lado da porta de entrada do edifício é a mesma que vi ainda há pouco descendo de um ônibus”.

A beleza de Jaíra, por mais que tivesse algo de carinhoso a expressar tomara- lhe como uma bofetada. Sim, uma bofetada dessas que as mulheres nunca sabem dar como a precisão moral que lhe impulsiona o gesto; e que soçobra inútil na esquiva do macho. Aproximou-se. Mas qual, ao lado de Jaíra um sujeito com um jornal embolado sob o braço surgiu como que de uma trincheira impedindo-lhe o caminho. Guardou o sorriso amassando-o sob os dentes, buscou um cigarro no bolso esquerdo da camisa, esquecido do outro ainda apagado no canto da boca. O restaurante. A fome.

A fome. O restaurante. Nenhuma mesa vazia. “Garçom, por favor, me traz uma cerveja, vou esperar vagar um lugar”. A cerveja demora a vir. Dirige-se até à porta e olha em direção à entrada do prédio. Não. O casal não estava mais ali. A rua molhada o corredor estreito do destino sempre tem outra direção desde que nos impulsione o primeiro passo. Um sinal de trânsito: proibido estacionar. “Moço, a sua cerveja, demorou, mas sempre chega”, o garçom bandeja o sorriso em meio à espuma transbordante do copo. Indicou-lhe um lugar vazio no canto sob a fechada da escada, onde uma Brigite Bardot de olhos, cabelo e boca erotizava os apetites.

Alimentado com o feijão e arroz à moda da casa, refez o brilho dos olhos e o vermelho do sangue. A chuva incessante comprometia apenas parte de seu programa: Ir até o Parque da Cidade em busca de um contato com a natureza, o programa de todo sábado. Teria o cinema ou a casa dos primos, um pouco de música em casa ou dormir após a leitura daqueles sonetos de Shakespeare. Estava sem nenhuma relação amorosa, queria uma fêmea. Aquela loira de pele queimada de sol e molhada de chuva agitara-lhe o instinto.

Lançou-se como um míssil em direção à tempestade. O maço de cigarro despencou do bolso esquerdo da camisa azulada como um coelho que saísse da toca e emergisse na cartola de um mágico desaparecido no fundo falso de um baú. Somente perceberia a perda ao parar 30 metros adiante. Sem fôlego. Encharcado. Jaíra ria dele, “meu Deus, como é possível?” O coração não estava no lugar de costume, deveria ter saltado pela boca em direção à mesma poça onde a carteira de cigarro naufragara. Aproximou-se, sem obstáculo.

- Olha, eu estava no 8º andar daquele prédio lá atrás quando você soltou do ônibus”. Jaíra mostrou-se surpresa olhando em direção ao alto. “Mas você estava ainda há pouco conversando lá atrás com alguém?”. Ela disse que sim, “é verdade”. Sinto que aconteceu algo errado, estou certo?”. Ela disse que sim, apenas um contratempo, um acerto de contas com uma pessoa conhecida, mas você está todo molhado, até seu lenço não cabe mais uma única gota...”

Não havia porque esperar a chuva passar...

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